quinta-feira, 22 de abril de 2010

sobre o tédio

EM CERTO ponto do romance "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, um dos personagens -o príncipe Korasoff- censura a tristeza do herói, Julien Sorel, explicando-lhe que "o ar triste não pode ser de bom tom; o que é necessário é o ar entediado. Se você está triste, há alguma coisa que lhe falta, alguma coisa que você não conseguiu. É mostrar-se inferior. Se você está entediado, ao contrário, o que é inferior é aquilo que em vão tentou agradá-lo".


É sem dúvida por essa razão que o ar blasé é tido por muitos como sinal de superioridade.

Não vejo superioridade nenhuma na pessoa cronicamente entediada. Se alguém, para parecer superior, precisa fingir estar entediado, é porque, na verdade, se sente inferior. Seu ar entediado é uma tentativa de se vingar dessa inferioridade. Por outro lado, uma pessoa que esteja sempre ou quase sempre genuinamente entediada não pode deixar de ser, em primeiro lugar, entediante: ela é entediada exatamente porque entendia a si própria.

Refiro-me aqui, é claro, às pessoas livres, isto é, àquelas que podem dispor, em medida considerável, do seu tempo. O que digo não se aplica, por exemplo, a enfermos, a prisioneiros ou a trabalhadores forçados.

E todos nós estamos sujeitos a momentos de tédio, como, por exemplo, quando nos encontramos, sem material de leitura, numa fila de banco, ou numa cerimônia da qual, por alguma razão, não conseguimos deixar de participar.

Fora semelhantes casos, porém, quase todos os nossos tédios são, como diz o poeta Paul Valéry, "nossa criação original". Difamar o mundo -e o mundo é sempre o mundo contemporâneo-, chamando-o de tedioso, diz muito sobre o difamador e nada sobre o mundo. Este não pode ser classificado nem de tedioso nem de interessante, pois é nele que se encontra tudo o que pode haver de interessante e de tedioso. Por isso, ele é entediante para quem é entediante, superficial para quem é superficial, profundo para quem é profundo, e interessante para quem é interessante.

(...) Como é possível ser tediosa a vida de uma pessoa que dispõe do seu tempo?

Creio que a resposta é que o tédio costuma acometer qualquer um que tenha orientado tudo na sua vida por uma única causa final.

A pessoa para quem o tédio se dá desse modo é aquela que tem um interesse obsessivo por uma só coisa. Nesse caso, encarando todas as demais coisas como meros caminhos ou obstáculos para a consecução do seu objetivo, ela as destitui de qualquer interesse intrínseco.

À medida que, em vez de facilitar o avanço dela rumo a esse ponto final, algo possui uma espessura e opacidade própria, à medida que exige atenção para si mesmo, passa a ser um obstáculo. Sendo assim, o tempo que, a contragosto, tal pessoa é obrigada a lhe dedicar, passa a ser um tempo de desvio, tempo que gostaria de ver passar o mais rapidamente possível, abrindo-lhe novamente caminho para a retomada da corrida rumo à finalidade última. Tal é o tempo do tédio, que ela tenta "matar", como se o tempo não constituísse a própria substância da vida.

O ponto final pode ser, por exemplo, uma paixão devoradora, que atropele tudo o mais. Digamos que uma pessoa vá a uma festa esperando ver o objeto de sua paixão e, lá chegando, não o veja. Então a festa que, não fosse por essa frustração, poderia ser uma delícia, torna-se, para ela, o mais puro tédio. Sem ganhar o objeto da paixão, ela perde o mundo. Eis uma das razões pelas quais tantos filósofos -inclusive Epicuro, que elogiava o prazer- apreciam o amor e a amizade, mas desconfiam da paixão.

http://www.fotolog.com.br/fernandazacarias/30529348

terça-feira, 20 de abril de 2010

PA nº 2010160290

Prezada Fernanda,

A proposta de regulamentação do afastamento de servidor para participação em programa de pós-graduação no país, previsto no art. 96-A da Lei n. 8.112/1990, elaborada pela Secretaria de Recursos Humanos em conjunto com as unidades regionais do sistema de RH da Justiça Federal, foi recebida na Secretaria-Geral no dia 05/04/2010. No dia 12/04 os autos do processo respectivo (PA n. 2010160290) foram encaminhados a esta Assessoria Técnico-Jurídica para análise e manifestação, observada a ordem de antiguidade para resposta, salvo situações de urgência e/ou excepcionalidade.

Maiores informações acerca do andamento do PA referido podem ser obtidas pelo telefone n. (61)3319####, comigo, Sheila, a quem os autos foram distribuídos.

Atenciosamente, Sheila C. F. Gibaile

sábado, 17 de abril de 2010

antes do almoço é muito bom

Cameralentamente, derramou o conteúdo da pilsen cristal adentro e, durante os lapsos de consciência que entremearam tão automático gesto, pôde perceber que a garrafa que acabara de abrir já tinha passado do ponto de gelo. À fina camada de espuma, enraizaram-se brancas estalactites feitas de espuma petrificada. Em dois minutos o aquecimento global liquefez a geleira, e a brahma tornou-se bebível, também em câmera lenta. “Enfim fim de semana”, semantizou num longo suspiro.

terça-feira, 13 de abril de 2010

– Resolvi abrir meu abandonado Yahoo. 550 emails não lidos. Jamais o serão. Abrir, posso até abrir um ou outro; mas no fim tal ato não se diferencia muito do tratamento de deletação sumária que receberão as demais missivas. Parecem tão inúteis quanto aqueles telefonemas que você atende e a pessoa diz “ops, foi engano”. Também resolvi visitar meu já desencarnado perfil no facebook. Me ative à carcaça da página, como se me desconhecesse.


– Ora, mas que bobabem é essa, agora deu pra pequenos pudores? reconheça logo que desconhece a si própria.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

confete


Para ilustrar o tanto que me é divertido estar aqui, só me restaria confeitar gelatinas.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

na praça de alimentação

Algumas pessoas esvaziam no lixo os restos de suas bandejas, no sem-gracismo típico daqueles que agem de acordo com sua consciência – sabendo rara tal atitude. São os bons coadjuvantes de uma praça que me serviu – tragicomicamente – pedaços de salmão ressecados, brandindo a icterícia peculiar das maçãs envelhecidas. Por mim, mereceria algo melhor, e aqui estão meus calcanhares que não me deixam mentir, cada qual com fendas talhadas por passos vesgos e enviesados, num esforço vão e trôpego de me protegerem do pé d’água.


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Há um método infalível contra a complexão de sorver um chopp sozinha, exposta aos olhares ruminantes do mais popular shopping de Niterói, o Plaza, ainda que em plena segunda-feira. É simples: basta abrir o notebook e ler e reler palavras dantes digitadas, ora digitando outras, ora invocando um ar de atenção e seriedade. Depois é só comungar com os espíritos boêmios que fielmente te acompanham.

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De repente meu paladar viu-se trespassado por um ácido calafrio: teria de enfrentar, após o aclive do chopp, longos cinco minutos de caminhada noturna até o apartamento. Nas ruas por vencer, vários ratos, tanto os de origem humana quanto os não conterrâneos da espécie. Quando chove, o centro se equipara a uma transbordante latrina; os desabamentos têm predileção pelas encostas, já que não há morros no entorno do decantado “Plaza”. Mas, nesse carteado, prefiro conceder à chuva os atributos de um coringa. Ela me permite evaporar pela janela do quarto – aqui reside nossa cumplicidade. Minha fé é a de que inexista quem cometa vítimas mundo a fora, quando se vê obrigado a equilibrar na raça um guarda-chuva combalido pelo vento.